SOBRE A CORAGEM DOS HOMENS E A LIBERDADE DE DEUS
A história de Cornélio em Atos, como quaisquer outros recortes, não é ingênua. Não é uma história sem teologia. Lucas não é um historiador, apenas. É um teólogo que pensa através das narrativas. Se é que há história sem interpretação, imparcial. Mas as da Bíblia, ao menos, são as mais parciais, são uma proposta. Como historiador, Lucas seria indiscutivelmente parcial. Já que enfoca apenas um quadrante da geografia do mundo de então e, portanto, da história cristã inicial em Atos dos Apóstolos. Centraliza toda a história em dois protagonistas, Pedro e Paulo. Seria um texto pobre se histórico. É bem mais que isso. É teologia narrativa. As partes contadas propõem algo sobre Deus e o projeto cristão.
O capítulo 10 de Atos é um texto de transição. É a história de Deus mais que a história do cristianismo. O cristianismo caminha com força em Jerusalém. Cornélio vive em Cesaréia. Pedro é sugado pela liberdade de Deus para lá. São duas visões. A visão de Cornélio, em que um anjo o avisa de suas orações e esmolas como pontos de contato com Deus. E a visão de Pedro, com fome e em êxtase, convidado por Deus para ultrapassar os limites da religião: ‘levanta e come porque Deus purificou. Enquanto você, Pedro, não enxerga e nem come porque considera impuro, eu o estou convidando a experimentar o que eu purifiquei’, diz Deus.
Pedro aceita o convite. Vai à casa de Cornélio e lá descobre que a visão dos bichos purificados fazia todo sentido. Deus já estava em Cesaréia antes de Pedro chegar. Pedro não foi evangelizar, apenas. Foi ser evangelizado por pelos de fora. Deus na casa de Cornélio é uma boa e inesperada notícia.
A grande notícia deste recorte em Atos não é a aproximação ao cristianismo de alguém com notoriedade, como Cornélio, chefe de uma tropa com 100 soldados romanos, que provavelmente também governava a província onde vivia. Também não é a descoberta de que o cristianismo não é a religião de incultos apenas. Tendo em vista a provável formação intelectual privilegiada do centurião.
A grande notícia desta história é que Deus não privilegia ninguém. Não há uma panelinha do céu. Não existem os “bam-bam-bans” de Deus. Deus busca a todos. Deus está definitivamente aberto a todos. Um Deus que escolhe a quem se revelar é um Deus dos escolhidos, sem chance sequer de ser um outro Deus. O Deus dos escolhidos é um deus prisioneiro. O Deus que Lucas quer que conheçamos é o Deus de todos os homens e mulheres. Lucas nos apresenta em Cornélio à liberdade de Deus, agora experimentada por Pedro e seus companheiros de viagem.
“Então Pedro começou a falar: “Agora percebo verdadeiramente que Deus não trata as pessoas com parcialidade, mas de todas as nações aceita todo aquele que o teme e faz o que é justo.” (34-35)”.
O que significa que Deus, por modos que não podemos listar exaustivamente, se revela a todos. Ninguém fica prejudicado pela revelação de Deus. Mas algumas pessoas o recebem e outras não. Alguns o experimentam e outros não. Por que?
Uma suposição. Algumas pessoas se desimpedem para Deus. Alguns ousam viver diante de um Deus livre. O texto sugere que havia em Cornélio uma postura que o tornou desimpedido para Deus. Revela também uma postura em Pedro que o tornara impedido para Deus, até então. Ambos experimentam a liberdade divina. Eu diria que Pedro é liberto pela liberdade de Deus enquanto assiste ao espetáculo de um não religioso experimentando Deus com intensidade inquestionável.
“Havia em Cesaréia um homem chamado Cornélio, centurião do regimento conhecido como Italiano. Ele e toda a sua família eram piedosos e tementes a Deus; dava muitas esmolas ao povo e orava continuamente a Deus. Certo dia, por volta das três horas da tarde, ele teve uma visão. Viu claramente um anjo de Deus que se aproximava dele e dizia: “Cornélio!” Atemorizado, Cornélio olhou para ele e perguntou: “Que é, Senhor?”O anjo respondeu: “Suas orações e esmolas subiram como oferta memorial diante de Deus.”
A maneira como Cornélio vivia o tornara mais sensível à liberdade de Deus. Acredito. Longe de mim, afirmar que o único modo pelo qual Deus se revela é este. Basta olhar para o enorme mosaico do agir de Deus na vida das personagens bíblicas. Ao contrário, essa história não é um padrão, ou mais um padrão a ser acrescentado ao nosso catecismo. Esse episódio é um não-padrão. É um contraponto. É Deus correndo por fora! Deus além-quintal da igreja ainda incipiente. Daí a resistência de Pedro mesmo em êxtase. Daí o susto de Pedro mesmo depois do êxtase.
É óbvio que não podemos tratar Cornélio como fazem alguns, alguém que até se encontrar com Pedro era ‘ímpio’, ou que se ‘converteu’ e ainda pior, que deixou de ser ‘ímpio’ depois de ouvir o sermão do evangelho de Pedro. Essas tentativas são coisas dos que insistem no deus prisioneiro, apavorados que ficam com a liberdade de Deus. Não percebo isso no texto. Não há um testemunho assim no texto. Ao contrário, o testemunho do texto é que Deus é com os não-judeus como foi com os judeus.
Vejo Cornélio como um chamado para mim. Ele é um convite divino para conhecer Deus pela sua liberdade e não pelas minhas suposições.
TINHA UMA VIDA COM DEUS MAIOR QUE A VIDA COM A RELIGIÃO.
Lucas começa a história nos contando o que a torna surpreendente. Cornélio era alguém que já amava a Deus antes de se envolver com os aspectos religiosos de amar a Deus. A expressão usada por Lucas não é casual:
“Ele e toda a sua família eram piedosos e tementes a Deus; dava muitas esmolas ao povo e orava continuamente a Deus.” (2)
Isto significava que mesmo sem ser judeu, ele reconhecia e buscava o Deus dos judeus. Mesmo sem ser circuncidado, sem guardar o sábado, sem praticar os ritos do judaísmo, Cornélio era alguém com genuína relação com Deus. Os não judeus convertidos ao judaísmo eram chamados de judeus prosélitos. Os não judeus que buscavam ao Deus dos judeus sem se converterem ao judaísmo eram chamados de tementes a Deus.
Veja, em nenhum momento o texto sugere um fechamento, ou uma negação em Cornélio da religião. Muito menos eu quero dizer algo parecido com isso, o que seria uma enorme contradição, visto ser eu um homem da religião, que sou pastor.
O que a narrativa de Lucas quer que compreendamos é a prioridade que a vivência com Deus tem sobre a vivência com a religião. E o que me assombra é o fato de invertermos essa prioridade com muita freqüência. Isso acontece quando a nossa vida religiosa, ou as programações da religião e suas obrigações se tornam o pouco da nossa vida que tem a ver com Deus. Fora do momento religioso ficamos com poucos vestígios de Deus.
Se meditamos sobre a vida à luz das Escrituras é graças ao momento do sermão;
Se oramos é porque o clérigo o faz coletivamente;
Se temos palavras de gratidão e celebração é porque cantamos na igreja;
Se abençoamos o próximo com palavras e abraços é porque o moço do louvor insiste para fazermos isso;
Se nos emocionamos com as coisas de Deus é porque sempre tem alguém contando alguma história inspirativa.
O que sobra de Deus na minha vida quando não estou nos ambientes da religião? Não seria esse o pior ateísmo? Esse que se veste de crente? No íntimo vive como se Deus não existisse। Quando tira a roupa de crente não sobra nada de Deus. Fora o momento religioso, não há Deus. Esse é o pior e verdadeiro ateísmo.
fonte
_http://elienaijr.wordpress.com/2007/06/05/75/
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