06/06/2009

Culpa ecológica




Por CLÁUDIA LAITANO


Aldous Huxley e George Orwell bem que tentaram, mas não chegaram nem perto de imaginar o nível de interferência nos hábitos da vida privada a que as campanhas de conscientização ecológica chegariam neste começo do século 21. Molhar as plantas, enxaguar a calçada, escovar os dentes, nada disso pode ser feito de forma inconsequente em 2009. Todas aquelas rotinas banais que antes podiam ser cumpridas com a cabeça lá longe, sonhando com o bem-amado ou montando mentalmente a lista do supermercado, hoje ganharam o peso de gestos políticos. Uma distração, a torneira ligada por dois minutos e 50 litros de água a mais do que o recomendado pelo Greenpeace, e você se sente não apenas culpado, mas burro e incivilizado – uma criatura tão alienada da realidade global a ponto de ser incapaz de incorporar ao dia a dia os cuidados mínimos para que seus netos não sejam obrigados a extrair água de pedra daqui a 50 anos.




Nenhuma pessoa razoavelmente bem-informada fica feliz em encarnar essa figura imprudente que desperdiça recursos naturais como se eles fossem ilimitados. Estamos, sim, dispostos a trocar nossos hábitos ecologicamente pré-históricos por práticas mais razoáveis e inteligentes. O problema é que quando você fica contente por ter automatizado rotinas simples como desligar a torneira na hora de escovar os dentes, separar direitinho o lixo ou apagar as lâmpadas desnecessárias, surge uma nova ordem do comando de caça aos ecologicamente imprudentes, levando ao limite extremo (bom, pelo menos até onde eu consigo imaginar) o patamar de intervenção na intimidade alheia: a campanha “faça xixi no banho”, lançada no mês passado pela fundação SOS Mata Atlântica, sob o argumento de que é possível economizar até 4.800 litros de água por ano simplesmente trocando o WC pelo ralo do chuveiro. (Alguns marotos acabam de lançar, só de sacanagem, a campanha “cocô no banho” – e não duvido que já existam voluntários dispostos a testar na prática essa radicalização da ideia original.)






O fato é que pouco importa onde você prefere (ou aceita) fazer xixi: a sensação é de que estamos sempre em dívida, como se tudo o que fazemos individualmente fosse insuficiente para compensar o milenar desperdício de recursos naturais. Mais do que nunca, somos levados a pensar em grupo – é preciso agir não só na nossa casa, mas na rua toda, no bairro, na cidade. Mas todo esse esforço para mudar hábitos domésticos particulares contrasta, em essência, com o individualismo dominante da nossa época. Preservar a natureza acaba se tornando, portanto, uma das poucas manifestações de ideologia coletiva, em que a ideia de um bem comum, agir além dos nossos interesses imediatos e da nossa comodidade, volta a fazer sentido.



Mas essa “revolução ecológica” – a transformação de um pensamento ligeiramente excêntrico em moeda corrente nos departamentos de marketing das maiores empresas do mundo – não aconteceu de forma uniforme. Quem assiste aos comerciais que vendem roupas, cremes de beleza e até serviços bancários com o apelo do “ecologicamente correto” pode ter a falsa impressão de que o ambientalismo triunfou sobre o consumo inconsequente e ganancioso – o que está longe de ser verdade.



Os departamentos de marketing podem ter percebido que consumidores conscientes, e muito culpados, preferem usar sabonetes que prometem preservar a Floresta Amazônica. Mas no mundo real, pelo menos nos países onde ainda não existe uma política ambiental consistente, a destruição de recursos naturais permanece tão predatória como sempre foi. E sem culpa nenhuma.




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