25/11/2009

Uma ponderação sobre o adoracionismo de nossas igrejas




Numa igreja em que pastoreei um rapaz, de bom nível acadêmico, comentou que “o pastor não gosta de louvor”. Surpreendeu-me que o não tão rapaz, quase quarentão dissesse isso. Segundo o Instituto Paulo Montenegro, apenas 26% dos brasileiros conseguem ler e interpretar um texto. Então, 74% são como o eunuco: não entendem o que lêem. Mas a pessoa tinha até pós-graduação.

Mas este rapaz-senhor é crente e os crentes têm muita facilidade de colocar na boca alheia palavras que não foram ditas. Principalmente quando sem argumentos. Mas não escrevo para criticar os 74%, nem a desonestidade de muitos crentes em sua argumentação. Lembro Baudolino, de Umberto Eco: “(…) em minha viagem percebi quanto os cristãos podem se esfolar uns aos outros por uma simples palavra”. Então, leiam o que estou dizendo, sem torcer e sem colocar palavras em minha boca. Nem me esfolem. Já o fui bastante e ainda não me recuperei de algumas esfoladas.
Eis o que digo: penso que o “adoracionismo” ou o “louvorismo” que grassa em nossas igrejas é uma arma diabólica para deixar os crentes enfurnados, fazendo o que gostam, cantando ingenuidades que não definem biblicamente quem é Deus, o que é igreja, qual a missão dos crentes, ao invés de levá-los ao testemunho. Entendeu? Se não, por favor, releia. Nem sempre sou muito claro, mas estou tentando.

A igreja é a única instituição do mundo que não existe para beneficiar seus membros, e sim beneficiar os não membros. Mas a igreja evangélica brasileira vive mais ensimesmada, olhando para si, fazendo o que lhe agrada, do que testemunhando. O adoracionismo ou o louvorismo tem desviado a igreja de sua missão e levado-a a exibir (por causa dos cânticos banais, sem conteúdo sério) a essência de sua mensagem de maneira aguada. Muito do que cantamos é genérico, não tem a ver com a mensagem cristã, não mostra a necessidade de arrependimento do não crente e de santificação do crente. Arrependimento e santificação são pouco mencionados, e a ênfase é sempre adorar, mostrado como cantar no culto, sob o comando de algumas pessoas. Aquele é o momento do louvor. O resto do culto não importa.

A coisa está tão feia, que o jornal inglês The Guardian falou de um novo tipo de traficantes, no Brasil: traficantes evangélicos. Isso mesmo. Se você faz parte dos 24% que entendem um texto, entendeu este, mas ficou chocado, releia; é isso mesmo. Como isto aconteceu? Como pode haver traficantes evangélicos? Porque não se caracterizou em nossos cânticos e pregações o que é ser um evangélico. Não é cantar na igreja, mas assumir o caráter de Cristo.

Então, entenda bem o que vou dizer: louvor ou adoração não é a razão da nossa conversão. Em Efésios 1.12 (“Com o fim de sermos para o louvor da sua glória, nós, os que antes havíamos esperado em Cristo”), “para o louvor da sua glória” não significa cantar corinho no culto. No contexto da carta, é mais amplo e muito maior que isso.
A idéia deste artigo me veio quando, me debrucei em Amós. Vi semelhanças incríveis entre o Israel do tempo do profeta e a igreja do meu tempo. Havia grande ênfase no culto, mas não havia ênfase alguma em caráter. O povo dissociou a adoração a Deus do caráter do adorador. É a partir daqui que sigo. Transformou adoração em festa, e não em contrição.

Transcrevo Amós 5.18-24: “Ai de vós que desejais o dia do Senhor! Para que quereis vós este dia do Senhor? Ele é trevas e não luz. E como se um homem fugisse de diante do leão, e se encontrasse com ele o urso; ou como se, entrando em casa, encostasse a mão à parede, e o mordesse uma cobra. Não será, pois, o dia do Senhor trevas e não luz? não será completa escuridade, sem nenhum resplendor? Aborreço, desprezo as vossas festas, e não me deleito nas vossas assembléias solenes. Ainda que me ofereçais holocaustos, juntamente com as vossas ofertas de cereais, não me agradarei deles; nem atentarei para as ofertas pacíficas de vossos animais cevados. Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras. Corra, porém, a justiça como as águas, e a retidão como o ribeiro perene”.

A situação social e espiritual do tempo de Amós era trágica. A leitura do seu livro mostra dominação econômica, empresários exploradores, religião de fachada conluiada com o poder dominante, líderes religiosos mais preocupados com sua situação financeira que com a situação espiritual do povo, e uma exaltação do status quo político e religioso, tudo regado com muito louvor.

A religião acobertava tudo, sacralizando o poder político, como fazem os pastores líderes de denominações que apóiam candidatos de acordo com suas conveniências, e não de acordo com princípios. Quando vejo os motivos que levam certos grupos a apoiarem Dilma ou Serra (como apoiaram outros, no passado), penso em Amós. Parece que o pano de fundo da opção política é o mesmo: “Quem me oferece melhores condições?”.
Uma religião corrompida, que sacraliza o pecado, que abençoa o corrupto, que fecha os olhos à injustiça e à roubalheira é a desgraça de um povo. Amós viu isso. Muito inferior a ele, eu também vejo.
Havia um anseio por triunfo. Queriam o dia do Senhor, que, presumiam, seria o domínio de Israel sobre as demais nações. Como o triunfalismo da igreja atual, que pensa em ganho, em ser triunfante, e não em ser militante. Em busca de triunfo (não escatológico, mas terreno), vale tudo. Até apoiar a corrupção, a mentira, fechar os olhos a posições de políticos anticristãos, mas que oferecem possibilidades de ganho. Continua a atitude de trocar votos por tijolos. Agora trocam-se votos por espaço e poder.

Amós disse que o dia do Senhor não seria o triunfo de Israel sobre o mundo, mas o juízo de Deus sobre o povo. Uma igreja que perde sua característica espiritual e se torna apêndice político de pessoas está sob o juízo de Deus, porque perdeu sua razão de ser. Eu era um pastor ainda garoto, de 23 anos, em 1972, quando num retiro de pastores (o primeiro de que participei), um prefeito foi apresentado como “servo de Deus a quem devíamos honra”. No bolso da camisa do “servo de Deus” que foi a um retiro de pastores, destacava-se um maço de cigarros. Mais tarde (naquele tempo corruptos não tinham a cabeça afagada) ele foi cassado por corrupção.
Cantamos vitória, mas não cantamos integridade. Omitimos santidade. Falamos do triunfo sobre os ímpios, mas nos esquecemos que seremos julgados: “Porque é necessário que todos nós sejamos manifestos diante do tribunal de Cristo, para que cada um receba o que fez por meio do corpo, segundo o que praticou, o bem ou o mal” (2Co 5.10). Tenho dificuldades com o louvor que não recorda que somos pecadores, que precisamos nos santificar, que seremos julgados. Tenho dificuldades com o louvor triunfalista que fala de vitória constante, e não enfatiza a necessidade de vitória sobre a carne, sobre si mesmo. Pensamos como Israel: adoramos a Deus que, subornado com cânticos, nos dá vitória. Deus quer santidade e não cânticos. Nosso louvor não o muda, mas nossos pecados o levam a indignar-se conosco.

O estado espiritual da igreja (sou igreja desde os 15 anos, e a amo e sirvo) é deplorável. Mentira, calúnia, falcatruas, desonestidades, ódio, fofoca, desestabilização de líderes, grupos dominadores, tudo isso se alastrou. Em quatro décadas como membro de igreja, nunca vi um estado espiritual como o de hoje. A ponto de haver traficantes evangélicos.

A salvação não é pretexto para pecado. Graça não é cartão de crédito para despesas no mercado do mundo. E santidade não é opção, mas um padrão normal para todos os crentes. Não consigo entender adoração que não produza santidade, impacto na vida e desejo de servir. Havia muito louvor no tempo de Amós, mas não havia integridade. Festa, mas não santidade. Quer descrição melhor de nossas igrejas? Temos artistas, mas faltam-nos santos. Saímos da igreja com uma emoção provocada não pelo Espírito, mas pelo dirigente de louvor, com seus gritos e os sermõezinhos chamados de “ministração” (honestamente, nenhum pensante merece isto!). Não saímos batendo no peito, dizendo “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!”, porque não nos descortinam todo o drama da cruz, e apenas nos apresentam momentos de entretenimento. Era assim com Amós. O culto era entretenimento. Mas culto produz o grito de Isaías: “Ai de mim!”. Adoração que mostra o “Deus fada madrinha”, mas não mostra a santidade de Deus como aterradora, deve ser repensada. Nosso grande problema não é falta de louvor, mas de caráter santo. Exatamente como no tempo de Amós.

A expressão “Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras” pode ser parafraseada: “Afasta de mim a barulhada dos teus corinhos, porque não ouvirei as melodias da tua bateria e das tuas guitarras”. E a seguir vem o que Deus esperava de Israel e espera de nós: “Corra, porém, a justiça como as águas, e a retidão como o ribeiro perene”. Deus quer justiça social, honestidade na vida, proteção dos necessitados, relacionamentos decentes. Sem isto, o louvor é apenas barulho.

Repito o trecho de Amós 5.21-24: “Afasta de mim o estrépito dos teus cânticos, porque não ouvirei as melodias das tuas liras. Corra, porém, a justiça como as águas, e a retidão como o ribeiro perene”. Deu para entender? Para nós, cantar é o que de mais importante podemos fazer. Para Deus, o maior culto é o existencial, feito com a vida. Sem ele, o culto vocal lhe irrita.

Entendam bem isto, cantores e compositores: não transformem o culto em entretenimento. Deus se indigna com isto. Vocês se colocarão sob juízo por desvirtuarem algo tão sagrado como o culto e por pensarem que Deus é um pascácio (para a moçada de hoje, que Deus é um “mané”). Santifiquem-se, aprumem suas vidas, percam o estrelismo e o artistismo. Antes de serem adoradores (que não é tão relevante assim), sejam servos. Deus se irrita com o barulho do louvor entretenimento, sem santidade. Aliás, muita gente se irrita com o barulho, de qualquer maneira, porque tem ouvidos sadios. Lembrem-se que é falsa a afirmação “Eu canto pra Deus, e não para os homens”. Então vá cantar no banheiro. Mas se você serve (deixemos o neopentecostalês de “ministra”) é servo da igreja, não deve se impor a ela, mas realmente ser servo dela. Você não quer a ditadura da naftalina, amém? (Pronto, usei um neopentecostês, no hábito de terminar toda pergunta com “amém”). Então, permita-me usar a minha: “Não quero a ditadura do cueiro, amém?”. Ah, sim, “cueiro” não é palavrão. Sua mãe e sua avó sabem do que falo.

Mudemos o foco atual de nossos cultos, tirando-o do entretenimento, do que faz bem a uma faixa etária, e vejamos o culto como um pecúlio de toda a igreja e como algo que deve produzir em nós um impacto espiritual que nos leve a clamar por pureza de vida. Era isso que Deus queria: que o culto fosse transformador da vida, e não ato de exibicionismo manipulador e gratificador de emoções. Não quero ser manipulado nem vou à igreja para ver estrelas ou receber entretenimento. E prezo retidão. Quero ser edificado, e muitas vezes saio frustrado. A artificialidade me deprime.

Eis minha ponderação.
 Pr. Isaltino Gomes Coelho Filho -
Pastor, conferencista e escritor
isaltinogomes@hotmail.com


Fonte:Adiberj via Comunidade Orkut “Não agüento mais mantra gospel

4 comentários:

Kadu disse...

Concordo em tudo o que o pastor colocou como sua ponderação. Acho que mais pessoas deveriam demonstrar ponderações como essa.
Só acho confuso o pensamento sobre o culto. Isso falo porque o querido pastor deixa transparecer que culto é aquele serviço prestado pelas instituições denominacionais. Mal prestado aliás, como ele muito bem escreveu.
O conflito, pra mim, é limitar, não sei bem o porquê, o culto ao serviço religioso denominacional. Aquilo pode ser culto sim, mas pode muito bem não ser, como na maioria não o é. Assim como cantar no chuveiro pode ser muito mais do que nos templos das instituições.
Assim, tenho muito menos pra dizer sobre o que tem sido feito por aí, dito como culto, e tenho muito mais pra prestar atenção naquilo que tenho feito, dizendo ser culto.
Se for pensar sempre de maneira limitada naquilo que é culto, me incomodarei demais mesmo, como bem está o querido pastor, com o péssimo serviço prestado pelas instituições, que pode sim, ser culto em muitos momentos, em muitas delas, mas pode estar completamente do sentido de culto à Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo.
Aliás, todo esse ajuntamento pode ser encarado como culto sim, se não colocarmos Deus nesse meio..., culto à si mesmo, culto à instituição, culto à personagem tal, ao "ministro" tal, etc...
Bom..., essa é minha ponderação!!
Abraço de novo!!

Alex Malta Raposo disse...

Parabéns pelo excelente espaço.

Que o Pai muito abençõe a este trabalho.

alexmaltta.blogspot.com
Evangelho da Graça

Cláudio Costa Da Silva disse...

Kadu!
O legal da net é esta oportunidade de compartilhar opiniões e desta forma aprender e ensinar mutuamente. Você levanta uma questão pertinente – O que é culto? E o consenso (senso comum) que culto é o ato litúrgico prestado pelas instituições denominacionais. Pergunte a qualquer membro o que ele irá fazer no templo – “Irei ao culto”. E isto é forte (eu pensei assim em boa parte de minha caminhada de fé). Quando entendi a questão da mulher samaritana “Nossos pais adoravam neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar” e a resposta de Jesus ...” Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque o Pai procura a tais que assim o adorem.” Dito isto fica claro que o lugar de culto não é geográfico, institucional, com hora marcada mas em verdade na vida daqueles que assimilam a verdade do Evangelho de Jesus como modo de vida. E como você disse o ajuntamento pode ser um culto, mas ele não contém todo o culto a Deus. Caio Fábio escreveu se não me engano no livro “Um projeto de espiritualidade integral” que a o grande desafio da igreja era fazer da vida um culto e dar vida aos cultos.
Sendo assim confesso a você meu irmão, quando sento num banco para assistir (o termo certo seria participar) um culto fico deprimido na maioria das vezes, por aquilo que dizem ser culto e principalmente pelas razões que o Pr. Isaltino levanta em seu pertinente texto e também pelo fato de ser tornado algo na primeira pessoa “eu” deixando de ser comunitário olhando para o irmão para ser egocêntrico .
Onde quero chegar? Entendo que as pessoas que estão cegas para esta realidade podem ser libertas e libertar outras pessoas, pela graça hoje eu enxergo o que nem eu nem a mulher samaritana enxergavam e só posso ser agente de mudanças nas vidas se eu puder me relacionar com elas e muitas vezes isso só é possível indo a onde se reúnem. Então meu culto racional de não conformação com o sistema é uma constante metanóia, servindo meu próximo e quando tenho oportunidade falo como foi desconstruída essa imagem de culto e como é bom celebrar ao Senhor no prédio onde irmãos se reúnem, mas também em casa, trabalho, escola, roda de chimarrão (sou gaúcho), jogando futebol ou onde quer que tenham pessoas como era a prática de Jesus.
Um grande abraço e seja sempre bem vindo a este blog.

Cláudio Costa Da Silva disse...

Obrigado Alex!

Seja sempre bem vindo!
E parabéns pelo seu blog.

Volte sempre!