30/03/2009

O Evangelho de Paulo


Por Nando

Para mim, está muito claro que Paulo pregava o mesmo Evangelho que Jesus, mas também, ao mesmo tempo, um Evangelho muito diferente.

A mensagem era a mesma: “abandonar a neurótica busca de justiça própria, libertando-se do jugo escravizante da autojustificação, e correr para a justificação em Cristo, pela fé na Justiça do Calvário”.


Entretanto, há um “Evangelho da circuncisão“ e um “Evangelho da incircuncisão” (Gl 2:7).

E onde está a diferença?


Nas pessoas às quais a mensagem - "única" – de libertação e justificação em Cristo é direcionada. A Pedro (e aos demais apóstolos) foi confiado o Evangelho da “circuncisão” (observem as introduções das epístolas neo-testamentárias não-paulinas). A Paulo foi confiado o Evangelho da “incircuncisão”.


O contraponto do Evangelho para os judeus era a Lei Mosaica, que a eles foi dada. De modo que os judeus que se convertiam deixavam de buscar "autojustificação" na Lei Mosaica, embora - como cidadãos - devessem continuar observando-a e submetendo-se a ela em seus aspectos civis (At 23:1-5).

É da insuportável exigência de justiça da Lei Mosaica (At 15:10) que a Graça de Cristo liberta os judeus (e gentios que espontaneamente – ou amarrados pelo cristianismo judaizado – a ela se submetem Gl 5:3-4).

O apóstolo dos gentios, entretanto, pregou o Evangelho da incircuncisão, que tem como contraponto apenas as normas instaladas na consciência humana desde a queda no jardim do Éden, qualquer que seja a religião do homem (Rm 2:11-16; 12:2).

Diferente dos apóstolos que escreveram aos “judeus convertidos” (os quais estavam livres do jugo autojustificador da Lei Mosaica, mas não de submeterem-se a ela como parâmetro de conduta, por isso muitos cristãos “da Graça” têm problemas para engolir a epístola de Tiago e alguns detalhes das epístolas de João), o apóstolo dos gentios não usou a Lei como referencial de condenação (a não ser para os que a ela se submetiam – Gl 4:21) nem jamais apontou a Lei Mosaica como parâmetro de conduta para gentios convertidos.

Por isso ele "desceu a lenha" no irmãozinho que estava transando com a própria madrasta (I Co 5:1), mas não o “enquadrou” em Dt 22:30 (como a “igreja” seguramente faria). Ele viu a idolatria de imagens em Atenas, mas não saiu berrando o Ex 20:4-6 (como a “igreja” sempre fez, ainda faz e sempre fará) nem ameaçou com as duras penalidades mosaicas os irmãos de Corinto que saíram com prostitutas (I Co 6:15-16).

E onde fica Cristo nessa história toda? Ora, Cristo era “ministro da circuncisão” (Rm 15:8), por isso (diferentemente do apóstolo dos gentios) falou do Evangelho sob a perspectiva da Lei Mosaica (“evangelho da circuncisão”) ao seu povo “segundo a carne” (Rm 9:5).

Por acaso, não é notório que Cristo sempre tentou evitar que houvesse gentios entre seus ouvintes? (nem preciso listar as muitas referências). Não é notório que as primeiras instruções aos discípulos foram para que eles evitassem pregar aos gentios? (Mt 10:5-6) A quem foi Cristo enviado? (Mt 15:24) Por quê?

Ora, porque o que se anunciava naquele momento era apenas o “Evangelho da circuncisão”, voltado exclusivamente para libertar judeus do jugo da Lei Mosaica como seu instrumento de justificação. Só depois o foco se voltaria para os gentios (Rm 1:16). Por isso, quando leio os evangelhos, mesmo nas palavras do próprio Jesus, submeto-o a uma “peneira”. Quando Cristo fala da Lei - para judeus (fariseus ou não) – não percebo suas palavras como direcionadas a mim. Não sou nem nunca fui judeu. Nunca estive debaixo da Lei Mosaica. Nunca aceitei esta imposição da “igreja” (como um todo).

Mesmo quando ministrados pelo próprio Cristo, os ensinos sobre a Lei me são úteis apenas para tentar libertar algum irmão de consciência fraca, bem como os neurotizados e endoidecidos pela arrogância legalista, a ponto de sentirem-se justificados em Moisés (embora afirmem que é em Cristo).

Quanto à minha pessoa - quanto à minha condição espiritual - palavras sobre a Lei Mosaica “entram por um ouvido e saem pelo outro”. Não perco tempo “gracificando” as aulas de “legislação mosaica” dadas por Cristo, como ministro da circuncisão, e que assustam muita gente “da Graça”, e ao mesmo tempo são úteis para os “legisladores” de plantão (Mateus 5:17-48, por exemplo). Dali, o que é Graça para a minha consciência, recebo. O que é Lei, não é pra mim, pois, no tocante a ela, estou crucificado e morto (Gl 2:19). E é isto que Cristo diria para nós hoje (e diz através do apóstolo dos gentios) a respeito de passagens como aquela.

A única serventia da Lei é apontar para a justificação em Cristo (Gl 3:24). Se passar disto, ela só gera o medo neurótico da condenação, e o meu problema com uma possível condenação já foi resolvido na cruz do Calvário. Nisto eu creio. Ah, se creio... Quero agora aperfeiçoar-me no amor (I Jo 2:5-6), e nem o medo nem a própria lei aperfeiçoam coisa alguma (I Jo 4:18; Hb 7:18-19).

Não tenho nenhum interesse em dissecar a Lei em busca de possibilidades de condenação (o que a “igreja” – salvo raras e preciosas exceções - vive fazendo). Eu, particularmente, concordo com Paulo que até os debates sobre a Lei são inúteis e fúteis (Tt 3:9).

Antes, porém, que alguém distorça o que aqui afirmo, quero deixar claro que, para mim, Cristo é o referencial absoluto do Evangelho. Ele “É” o próprio Evangelho e a Graça de Deus encarnados. Mas quanto à APLICABILIDADE do Evangelho na vida dos discípulos, Cristo fez uma aplicação exclusivamente para judeus (ou isto não está claro na Bíblia?), mas separou alguém, antes mesmo que este nascesse, para pregar o Evangelho entre os não-judeus, sem vinculá-lo às suas tradições e raízes judaicas (“não consultei carne e sangue” – Gl 1:15-17), tornando-se o “apóstolo dos gentios” (Rm 11:13). Ou isto também não está claro na Bíblia?

Por isso, mesmo no que o “Evangelho de Paulo” difere do “Evangelho de Cristo” (a Lei como parâmetro de condenação e de conduta) ele o faz em obediência ao próprio Cristo (I Co 14:37-38), que, através de Paulo, ministra aos gentios (o que ele não fez enquanto esteve corporeamente sobre a Terra).

A questão é: Por que Deus julgou tão importante separar Evangelho da Circuncisão e da Incircuncisão? Por que ele – definitivamente - não quis que o Evangelho da Circuncisão fosse pregado aos gentios? Que problemas poderiam surgir se o Evangelho da Circuncisão (que tem como contraponto a Lei Mosaica) fosse pregado aos gentios?

A resposta está na história da religião cristã, que - agindo fora do plano de Deus - sempre misturou "Evangelho da Circuncisão" e "Evangelho da Incircuncisão" e, assim, acabou criando o “evangelho da autojustificação na Lei, mas proclamado em nome de Cristo” (o “outro evangelho” Gl 1:6-9), onde prevalece a cegueira religiosa, que não liberta para Cristo e só gera escravidão à justiça própria (jugo da Lei). Ah, se algum dia a “igreja” entender isso...

Enfim, sou discípulo de Cristo, que é tudo e em todos – judeus e gentios (Cl 3:11). Mas sou gentio e não conheço nenhum judeu, por isso, mesmo crendo em uma só Graça, quanto ao papel da Lei na vida cristã, prego o “Evangelho da Incircuncisão”. Sim, neste ponto, prego o “Evangelho de Paulo”.

Autor: Fernando C. M. Rodrigues Via Djair Soares por e-mail

(Fortaleza-CE, Mar/2009)

Um comentário:

Sergio Natan disse...

Pois eu sou, sempre fui e sempre serei judeu, a não ser que me façam retirada e transfusão total de sangue, mas, gostaria de trocar umas idéias com o Nando, pois concordo e discordo de algumas assertivas feitas por ele. Vê-se que é pessoa bastante espiritual e honesta consigo mesma, e como cristão, corajoso por falar e apontar defeitos de sua própria Igreja. Gostei muito.